Para os judeus do Antigo Testamento, um dos dias mais importantes do ano era a celebração do Dia da Expiação, cujos regulamentos estão explicados no capítulo 16 do livro de Levítico. Nessa data, o sumo-sacerdote primeiramente oferecia um sacrifício pelos seus pecados e dos de sua casa; a seguir, eram realizados sacrifícios pela nação de Israel.

Receberá da comunidade de Israel dois bodes como oferta pelo pecado e um carneiro como holocausto. Arão sacrificará o novilho como oferta pelo seu próprio pecado para fazer propiciação por si mesmo e por sua família. Depois pegará os dois bodes e os apresentará ao Senhor, à entrada da Tenda do Encontro.

Levíticos 16:5-7

Um sorteio era realizado entre os dois bodes: um era “para o Senhor” e o outro servia como “bode expiatório”, “bode emissário” ou “bode para Azazel”. O primeiro bode era morto pelos pecados do povo e seu sangue utilizado para purificar o Lugar Santíssimo, a Tenda do Encontro e o altar (v. 20). Após esses procedimentos, o sacerdote impunha suas mãos sobre o bode vivo e confessava a iniquidade da nação, transferindo os pecados para o animal. A seguir, o bode era enviado por alguém designado para um lugar deserto (v. 21-22), removendo para longe esses pecados. 

Todos os teólogos cristãos concordam que o bode sacrificado era um tipo ou símbolo de Cristo, que verteu seu sangue por nós na cruz. Mas e quanto ao segundo bode? Com exceção dos teólogos Adventistas do Sétimo Dia, concorda-se de forma geral que o segundo bode também representava ao Senhor Jesus Cristo.

Veja, por exemplo, as seguintes declarações da profetisa Adventista, Ellen G. White, sobre como o simbolismo é entendido:

“Semelhantemente, ao completar-se a obra de expiação no santuário celestial, na presença de Deus e dos anjos do Céu e do exército dos remidos, serão então postos sobre Satanás os pecados do povo de Deus; declarar-se-á ser ele o culpado de todo o mal que os fez cometer. E assim como o bode emissário era enviado para uma terra não habitada, Satanás será banido para a Terra desolada, que se encontrará como um deserto despovoado e horrendo.” [1].

“Satanás e seus anjos sofreram muito tempo. Satanás não somente arrostou o peso e castigo de seus próprios pecados, mas também dos pecados da hoste dos remidos, os quais foram colocados sobre ele; e também deve sofrer pela ruína de almas, por ele causada.” [2]

“Visto que Satanás é o originador do pecado, o instigador direto de todos os pecados que ocasionaram a morte do Filho de Deus, exige a justiça que Satanás sofra a punição final. A obra de Cristo para a redenção dos homens e purificação do Universo da contaminação do pecado, encerrar-se-á pela remoção dos pecados do santuário celestial e deposição dos mesmos sobre Satanás, que cumprirá a pena final.” [3]

A quem esse segundo bode representava então: a Cristo ou a Satanás?

Apenas Cristo é nossa oferta pelo pecado

O texto de Levíticos 16 aponta que o bode vivo participava da expiação pelo pecado. A Bíblia não diz apenas que “a maldade e rebelião dos israelitas” (Levíticos 16:21) eram colocadas sobre a cabeça do bode expiatório, mas também que esses pecados eram colocados sobre ele “para fazer expiação” (versículo 10). Satanás estaria de alguma forma envolvido na expiação provida por Cristo? Satanás faria uma “expiação” pelos pecados dos justos no final, sendo que Jesus já fez expiação por eles na cruz do Calvário (1 João 2:2)?

Enquanto o derramamento de sangue do primeiro bode representava a remissão dos pecados, o segundo bode demonstrava a remoção desses pecados. O bode expiatório conduzido por um homem ao deserto era necessário para mostrar que os pecados do povo de Deus estavam sendo separados deles e removidos a uma grande distância. Ambos os bodes representavam, portanto, a expiação de forma completa.

‘Esta é a aliança que farei com eles, depois daqueles dias’, diz o Senhor. ‘Porei as minhas leis em seus corações e as escreverei em suas mente’; e acrescenta: ‘Dos seus pecados e iniquidades não me lembrarei mais.’”

Hebreus 10:16-17

Pois como os céus se elevam acima da terra, assim é grande o seu amor para com os que o temem; e como o Oriente está longe do Ocidente, assim ele afasta para longe de nós as nossas transgressões.

Salmos 103:11-12

Ele mesmo levou em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, a fim de que morrêssemos para os pecados e vivêssemos para a justiça; por suas feridas vocês foram curados.

1 Pedro 2:24

Todos nós, tal qual ovelhas, nos desviamos, cada um de nós se voltou para o seu próprio caminho; e o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós

Isaías 53:6

O Comentário Bíblico de Benson assim explica: 

“Os doutores judeus dizem-nos que este bode, sobre o qual os pecados da nação eram transferidos, estava carregado de todas as marcas de reprovação e imprecações, e que o povo orava para que todos os males que eles pensavam serem devidos a eles próprios caíssem sobre ele. Assim foi Cristo feito maldição por nós, pois nele foram lançadas as iniquidades de todos nós.” [4] 

O comentarista Matthew Poole também declara:

“Tanto este quanto o outro bode tipificavam a Cristo; tanto em sua morte e paixão por nós, quanto em sua ressurreição para a nossa libertação.” [5]

Os teólogos Norman Geisler e Frank Turek afirmam no mesmo sentido:

“O primeiro bode era morto e o seu sangue, derramado (Levíticos 16:15), representando a morte substitutiva de Cristo e o derramamento do seu sangue por nossos pecados. O sumo sacerdote tinha então de tomar o bode emissário, confessar os pecados de Israel sobre a cabeça daquele bode, e enviá-lo para o deserto. Isso representava o efeito de levar embora, para sempre, os pecados de Israel, e simbolizava a obra de Cristo, que era levar para sempre os nossos pecados, como Isaías profetizou: ‘mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos’ (53:6). Os vários aspectos da obra de Cristo na redenção são simbolizados pelo que os dois animais desempenhavam no Dia da Expiação, cada um com o seu papel.” [6] 

Uma única oferta, não duas

O texto de Levíticos 16:5 afirma: 

Receberá da comunidade de Israel dois bodes como oferta pelo pecado e um carneiro como holocausto.

Levíticos 16:5

O texto declara e os comentaristas bíblicos historicamente entenderam que ambos os bodes são parte de uma mesma oferta, e não duas ofertas distintas. Logo, não faz justiça à lógica entender que uma parte da oferta tipifica a Cristo e outra a Satanás.

“Os dois bodes são descritos como uma oferta pelo pecado.” [7]

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“O novilho (Levíticos 16:3) e os bodes eram para ofertas pelo pecado e os carneiros para holocaustos. Os bodes, embora usados de maneiras diferentes, constituíam apenas uma oferta.” [8]

“Dois bodes para oferta pelo pecado; um dos quais era morto, e o outro deixado vivo, e ambos eram apenas uma oferta, típica de Cristo em ambas as suas naturezas, divina e humana, unidas em uma pessoa; e quem foi feito pecado, e se tornou uma oferta pelo pecado para o seu povo.” [9]

Destaca-se também que o bode expiatório deveria ser perfeito e imaculado. Se ele deveria representar Satanás, então Satanás também deveria ser sem mancha e pecado! Se o bode sacrificado representava a natureza perfeita de Cristo, então o bode expiatório impecável deveria também representar um diabo sem pecado! Isso está realmente longe do ensino das Escrituras. 

O significado de Azazel

Qual é o significado da expressão “para Azazel”, conforme aparece em algumas versões bíblicas? Mesmo teólogos Adventistas reconhecem as limitações que existem em um reconhecimento exato da etimologia do termo.

“A palavra ‘Azazel’ tem sido objeto de muita disputa e conjectura através dos séculos. Muitos estudiosos concordam que é ‘uma frase de dificuldade incomum’ (Smith and Peloubet, A Dictionary of the Bible, p. 65); ‘a origem e o significado do bode ‘para Azazel’ são de fato obscuros’ (George B. Stevens, The Christian Doctrine of Salvation, p. 11); ‘que sua etimologia não é clara’ (T. W. Chambers, Satan in the Old Testament, Presbyterian and Reformed Review, vol. 3, p. 26).” [10]

Os eruditos evangélicos Walter C. Kaiser Jr., Peter H. Davids, F. F. Bruce e Manfred T. Brauch comentam:

“Os tradutores gregos não consideraram azazel como um nome próprio, mas o conectavam com ‘a z’zel, um verbo que não aparece no Antigo Testamento. O significado que deram a ele foi ‘mandar embora’. Daí o significado completo da expressão hebraica seria ‘a fim de enviá-lo’. A tradução em latim seguiu esse mesmo entendimento. A explicação mais adequada é ver o termo ‘aza'zel como sendo composto de duas palavras: a primeira parte, ‘ez, significando ‘bode’, e a segunda parte, ‘azel, significando ‘ir embora’. Com evidências recentes do Ugarítico (a língua da antiga Canaã da qual o hebraico é derivado), nomes compostos como este estão surgindo mais frequentemente do que o que esperávamos com base nas evidências do hebraico somente. É assim que a tradução ‘bode expiatório’ veio a surgir.” [11]

Em tempos posteriores a mitologia judaica entendeu que Azazel era o nome de um demônio que habitava no deserto. No Livro de Enoque, no Livro dos Gigantes e em outras obras pseudoepigráficas judaicas, Azazel era o nome de um dos anjos caídos que pecaram em Gênesis capítulo 6. Mas não é possível de forma alguma comprovar que esse era o significado original da expressão.

Ainda assim, cabe destacar que alguns eruditos evangélicos consideraram Azazel como o nome de um espírito maligno ou Satanás, em especial por ele fazer um contraste com o bode que era “para o Senhor”. O livro Adventista Questions on Doctrine cita como importantes exemplos William Milligan, James Hastings e William Smith, da Igreja Presbiteriana; Elmer Flack e H. C. Alleman, da Igreja Luterana; Charles Beecher e F. N. Peloubet, da Igreja Congregacional; George A. Barton, da Sociedade dos Amigos; John M’Clintock e James Strong, da Igreja Metodista; e James M. Gray, da Igreja Reformada Episcopal. [12] 

Porém, a obra Adventista desvia a atenção do leitor; enquanto diversos autores evangélicos consideram Azazel um espírito maligno ou símbolo de Satanás, não consideram o “bode para Azazel” como sendo o mesmo símbolo. O bode continua sendo um símbolo de Cristo! 

Nessa interpretação, o bode expiatório era levado ao deserto para testemunhar ao espírito maligno que o sacrifício feito havia sido aceito. Uma vez que Satanás é o acusador (Apocalipse 12:10), Deus o está silenciando, mostrando que agora o pecado foi pago e Seu povo foi justificado. Por exemplo, o renomado teólogo Presbiteriano Albert Barnes, que acredita que Azazel é um símbolo de Satanás, afirma:

“O próprio bode não perdeu o caráter sagrado com o qual fora dotado ao ser apresentado diante de Javé. Foi, tanto quanto o bode morto, uma figura dAquele que suportou nossas dores e levou nossas tristezas, sobre o qual o Senhor pôs a iniquidade de todos nós (Isaías 53:4 Isaías 53:6), para que pudéssemos nos tornar uma Igreja santificada para ser apresentada a Si mesmo, não tendo mancha ou ruga ou qualquer coisa assim (Efésios 5:26-27).” [13]

Assim, tanto a evidência bíblica quanto a histórica confirmam a associação tradicional do bode expiatório do Dia da Expiação com o Senhor Jesus Cristo.

Referências

[1] Ellen G. White, O Grande Conflito, p. 658.

[2] Ellen G. White, Primeiros Escritos, p. 294, 295.

[3] Ellen G. White, Patriarcas e Profetas, p. 255.

[4] Joseph Benson, Benson’s Commentary on the Old and New Testaments, sobre Levíticos 16:8.

[5] Matthew Poole, Matthew Poole’s Commentary on the Holy Bible, sobre Levíticos 16:8.

[6] Norman Geisler e Frank Turek, Manual de Dificuldades Bíblicas, p. 82.

[7] Cambridge Bible for Schools and Colleges, sobre Levíticos 16:5.

[8] Jamieson-Fausset-Brown Bible Commentary, sobre Levíticos 16:5.

[9] John Gill, Gill’s Exposition of the Entire Bible, sobre Levíticos 16:5.

[10] Seventh-day Adventists Answer Questions on Doctrine, p. 391.

[11] Walter C. Kaiser Jr., Peter H. Davids, F. F. Bruce e Manfred T. Brauch, Hard Sayings of the Bible, p. 159. 

[12] Seventh-day Adventists Answer Questions on Doctrine, p. 395.

[13] Albert Barnes, Barnes’ Notes on the Bible, sobre Levíticos 16:8.

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