A reencarnação é a antiga crença oriental segundo a qual uma porção de nosso ser (a consciência, alma ou espírito) prossegue em existência após a morte, vindo a passar por inúmeros renascimentos em diferentes corpos, com a finalidade de anulação do carma (a colheita das consequências de ações praticadas anteriormente), o auto-aperfeiçoamento ou a própria auto-aniquilação. Apesar das diversas divergências desse ensinamento com os ensinos do Cristianismo, conforme expressos nas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento, muitos argumentam que a reencarnação era doutrina oficial da Igreja até o século VI, quando teria sido proibida e suprimida da Bíblia no Segundo Concílio de Constantinopla, em 553 d.C.

Allan Kardec, em sua obra “O Evangelho segundo o Espiritismo”, afirma sobre Agostinho, teólogo cristão do século V:

“Santo Agostinho é um dos maiores vulgarizadores do Espiritismo. Manifesta-se quase por toda parte. A razão disso encontramo-la na vida desse grande filósofo cristão. Pertence ele à vigorosa falange dos Pais da Igreja, aos quais deve a cristandade seus mais sólidos esteios.”

Léon Denis (1846 - 1927), um dos continuadores da doutrina espírita na França após a morte de Allan Kardec, fez as seguintes citações em seu livro “Cristianismo e Espiritismo”:

“...encontramos a doutrina secreta [reencarnação], dissimulada sob véus mais ou menos transparentes, nas obras dos apóstolos e dos padres da Igreja dos primeiros séculos. Não podiam estes dela falar abertamente. Daí as obscuridades da sua linguagem.”

“De todos os padres da Igreja, foi Orígenes quem afirmou, do modo mais positivo, em  numerosas passagens dos seus Princípios (Livro 1), a reencarnação ou renascimento das almas.”

O mesmo autor, em sua obra “O Gênio Céltico e o Mundo Invisível”, declarou que:

“Nos primeiros tempos do Cristianismo, homens como Orígenes, São Clemente e quase todos os antepassados gregos professaram [a reencarnação] vivamente, e, no século IV, São Jerônimo, secretário do papa Dâmaso e autor da Vulgata, na sua controvérsia com Vigilentius o Gaulês, devia ainda reconhecer que ela era a crença da maioria dos cristãos do seu tempo.”

Esse artigo não pretende ser uma análise filosófica ou teológica da doutrina da reencarnação, mas sim, uma demonstração histórica de que tal ensinamento jamais foi recebido pelos apóstolos ou pelos cristãos dos primeiros séculos, tampouco que tenha sido suprimido da Bíblia em algum momento histórico. Para isso, iremos analisar o que alguns dos primeiros cristãos referiram sobre o assunto. Observaremos que, quando não rejeitaram a reencarnação explicitamente, sua visão sobre o pós-morte excluía tal possibilidade.

Justino Mártir (100 - 165 d.C.)

Alguns argumentam que Justino Mártir foi um dos primeiros defensores da reencarnação entre os cristãos. Para perceber o contrário disso, basta analisar o capítulo IV de sua obra “Diálogo com Trifão”. Para Justino, a doutrina cristã fez melhor sentido filosófico do que a melhor das filosofias gregas que ele pôde encontrar, como o platonismo, que asseverava a transmigração das almas para formas superiores e inferiores de vida.

Em sua outra obra, I Apologia, ele declara o que cria a respeito da vida após a morte:

“E disse mais [Jesus]: ‘Não temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais podem fazer; temei antes aquele que, depois da morte, pode lançar alma e corpo no inferno’. Deve-se saber que o inferno é o lugar onde serão castigados os que tiverem vivido iniquamente e não acreditaram que acontecerão essas coisas ensinadas por Deus, através de Cristo.” (I Apologia 19:7)

“Assim é que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo: uma, já cumprida, como homem desonrado e passível; a segunda, quando virá dos céus acompanhado de seu exército de anjos, quando ressuscitará também os corpos de todos os homens que existiram; revestirá de incorruptibilidade os que forem dignos, e enviará os iníquos, com percepção eterna, ao fogo eterno, junto com os perversos demônios. Vamos mostrar como foi profetizado que isso deverá acontecer.”  (I Apologia 52:3-4)

Teófilo de Antioquia (c. 120 - 180 d.C.)

Outro cristão primitivo, Teófilo de Antioquia, também apontou a ressurreição dos mortos - e não a reencarnação - como a doutrina do Cristianismo.

“Quando depuseres a mortalidade e te revestires da incorruptibilidade, verás a Deus de maneira digna. Com efeito, Deus ressuscitará a tua carne, imortal, juntamente com tua alma. Então, tornado imortal, verás o imortal, contanto que agora tenhas fé nEle. Então, reconhecerás que falaste injustamente contra Ele.”   (Carta a Autólico, Livro I:7) 

Irineu de Lyon (130 – 202 d.C.)

Irineu de Lyon, comentando sobre a parábola do rico e do Lázaro (Lucas 16:19-31), em sua obra “Contra as Heresias”, rejeitou claramente a reencarnação:

“Tudo isso supõe clarissimamente que as almas permanecem, sem passar de corpo em corpo, que possuem as características do ser humano, de sorte que podem ser reconhecidas e que se recordam das coisas daqui de baixo.”   (Contra as Heresias, Livro II, 34:1) 

Ele declara ainda que como Jesus

“...ressuscitou no corpo, e depois da ressurreição foi levado ao céu, fica claro que as almas dos seus discípulos também [...] entrarão no lugar invisível que lhes foi destinado por Deus, e ali permanecerão até a ressurreição, esperando por ela; então, recebendo os seus corpos, e ressuscitando em sua totalidade, isto é, de modo corpóreo, assim como o Senhor ressuscitou, eles assim irão à presença de Deus.”   (Contra as Heresias, Livro V, 31:2) 

No seu livro Contra as Heresias, há um capítulo inteiro dedicado ao “Abuso da Doutrina da Transmigração das Almas”  (Livro II, 33)  

Atenágoras de Atenas (133 - 190 d.C.)

“Nós somos persuadidos de que, quando deixarmos esta vida, teremos outra vida, melhor do que esta, e celestial, não terrena (uma vez que habitaremos perto de Deus, e com Deus, livres de todas as alterações ou sofrimentos na alma, não como carne, ainda que tenhamos carne, mas como espíritos celestiais); não cairemos com os demais, numa vida pior e no fogo; pois Deus não nos fez como ovelhas ou como animais de carga, uma mera obra secundária. Jamais pereceremos, nem seremos aniquilados.”   (Petição em Favor dos Cristãos 31) 

“[O fato de que] o Seu poder é suficiente para ressuscitar os defuntos é demonstrado pela criação destes mesmos corpos. Pois se, quando eles não existiam, Ele criou, na sua primeira formação, os corpos de homens e seus elementos originais, quando eles forem dissolvidos, Ele os ressuscitará, de qualquer maneira que possa haver, com a mesma facilidade, pois também isto é igualmente possível para Ele.”   (Sobre a Ressurreição 3) 

Clemente de Alexandria (150 - 215 d.C.)

Clemente de Alexandria é frequentemente citado como tendo defendido a reencarnação, mas a rejeitou explicitamente em sua obra “Stromata”  (Livro IV, 12Livro VI, 4)

Tertuliano (160 - 220 d.C.)

“Portanto, depois disso não existe a morte nem repetidas ressurreições, e seremos os mesmos que somos agora, e sem nenhuma modificação, como servos de Deus. Estaremos sempre com Deus, vestidos com a própria essência da eternidade. Mas os profanos, e todos aqueles que não são verdadeiros adoradores de Deus, serão consignados ao castigo do fogo perpétuo.”   (Apologia, Livro 1, 48) 

“A doutrina da transmigração [reencarnação] é uma falsidade não só vergonhosa mas também perigosa.”   (Sobre a Alma 23-24) 

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“Quão mais digno de aceitação é o nosso ensino de que as almas irão retornar aos mesmos corpos. E quão mais ridículo é o ensino herdado [pagão] de que o espírito humano deve reaparecer em um cão, cavalo ou pavão!”   (Ad Nationes 19) 

Orígenes (c. 185 - c. 254 d.C.)

Apesar de ser citado como a referência mais clara para a doutrina da reencarnação, Orígenes ensinou a pré-existência das almas (a crença segundo a qual Deus nos criou como almas antes de nascermos fisicamente nesse mundo), mas jamais a reencarnação. Foi essa crença (a pré-existência da alma) que foi condenada no Segundo Concílio de Constantinopla.

Orígenes rejeitou explicitamente a reencarnação. Em seu comentário bíblico sobre o Evangelho de Mateus, ao comentar a ideia de alguns de que João Batista seria a reencarnação do antigo profeta Elias (algo ensinado por muitos reencarnacionistas atuais), ele declarou:

“Neste lugar [Mateus 17:10-13] não parece para mim que, por Elias, refere-se à alma, para que não caia no dogma da transmigração [reencarnação], que é estranha à igreja de Deus e não ensinada pelos Apóstolos, nem em qualquer lugar é estabelecido nas Escrituras.”   (Comentário de Mateus XIII:1) 

Orígenes argumentou que a reencarnação é contrária à doutrina bíblica de um julgamento no fim dos tempos, e que João não tinha a “alma” mas o “espírito e poder” de Elias (Lucas 1:17). (Comentário de Mateus XIII:1-2)

“O ensinamento apostólico é que a alma, tendo uma essência e vida próprias, depois da sua partida deste mundo será recompensada, segundo o seu merecimento, sendo destinada a obter uma herança de vida eterna e bênção, se as suas ações o merecerem, ou será entregue ao fogo eterno e à punição, se a culpa de seus crimes for resumida a isto. E, além disto, haverá um tempo de ressurreição dos mortos, quando este corpo, que agora está semeado ‘em corrupção, ressuscitará em incorrupção’, e aquele que está semeado ‘em ignomínia, ressuscitará em glória.’”   (De Principiis, Prefácio, 5)

Uma análise mais detalhada dos escritos dos cristãos dos primeiros séculos pode ser obtida por meio da obra “The Ante-Nicene Fathers”, coleção de livros em 10 volumes organizada por A. Cleveland Coxe, Alexander Roberts, James Donaldson, Philip Schaff e Henry Wace, contendo traduções para o inglês dos textos cristãos da época apostólica até o Concílio de Niceia, em 325 d.C.

Jerônimo (345 - 419 d.C.)

Jerônimo produziu a Vulgata (tradução da Bíblia para a língua latina). Os defensores da reencarnação atribuem a Jerônimo a seguinte declaração em sua carta a Demetrius: 

“A doutrina da transmigração tem sido secretamente ensinada de tempos antigos a pequenos números de pessoas, como uma verdade tradicional que não foi divulgada.”

Contudo, a leitura desta carta não revela nenhuma declaração como esta. Pelo contrário, Jerônimo condena a doutrina como um “ensino imoral e não-divino”.

Agostinho (354 - 430 d.C.)

Começamos com a citação de Allan Kardec sobre como Agostinho como um dos maiores divulgadores da doutrina espírita, e terminamos com esse importante teólogo católico. Porém, Agostinho, à semelhança dos outros pais da Igreja, rejeitou claramente a reencarnação.

“Pois é impossível que sustentes a opinião de Orígenes, Prisciliano e outros hereges que, por causa dos atos cometido numa vida anterior, as almas são confinadas em corpos mortais e terrenos. Esta opinião é, na verdade, categoricamente contradita pelo o que o apóstolo diz de Jacó e Esaú que, antes de terem nascido, não cometeram nem o bem, nem o mal [Romanos 9:11].”   (Carta de Agostinho a Optatus) 

Em “A Cidade de Deus” (Livro X, 30), Agostinho trata sobre as visões reencarnacionistas de Porfírio, Platão e Plotino, e conclui que a verdade ensinada pelos profetas, por Cristo e pelos apóstolos de que as almas retornam de uma vez por todas para os seus próprios corpos (ressurreição) é mais honrosa.

E os Manuscritos da Bíblia?

É verdade que a reencarnação foi suprimida dos manuscritos da Bíblia no século VI? Isso também é impossível. A grande quantidade de manuscritos antigos que datam dos primeiros séculos depois de Cristo é suficiente para refutar qualquer alegação de supressão ou adulteração do texto tal qual os apóstolos nos legaram. Contamos com cerca de 5.400 manuscritos gregos, 10.000 manuscritos em latim e 9.300 manuscritos em siríaco, copta, eslavo, gótico e armênio.

O manuscrito mais antigo que possuíamos do Novo Testamento era o papiro John Rylands, do Evangelho de João (datado de 125 d.C.). Recentemente, confirmou-se a veracidade de um manuscrito do Evangelho de Marcos, datado entre 80 e 110 d.C. (ou seja, cerca de 30 - 40 anos após a escrita do texto original).

Sir George Frederic Kenyon (1863 - 1952), paleógrafo britânico, diretor do Museu Britânico e presidente da Academia Britânica de 1917 a 1921, concluiu que 

“o intervalo, neste caso, entre as datas do texto original e as evidências conhecidas mais antigas torna-se tão pequeno que pode ser considerado desprezível, e o último argumento que questionava se as Escrituras teriam chegado até nós substancialmente como foram escritas, foi assim definitivamente refutado.”   (The Bible and Archaeology, pág. 288) 

O que a Bíblia Ensina?

Os cristãos não creem na reencarnação não apenas porque ela não está na Bíblia, mas porque seus fundamentos são contrários aos fundamentos mais básicos dos ensinamentos de Cristo e do Novo Testamento. Concluímos com uma citação da Teologia Sistemática de Norman Geisler (pág. 1050-1051), que nos resume a questão:

“A reencarnação está baseada na doutrina do carma, uma lei inexorável que não tem exceções. Os pecados não podem ser perdoados; se um a pessoa não receber o que lhe é devido nesta vida, deverá recebê-lo posteriormente. O evangelho cristão diz que o perdão é possível. Jesus perdoou os Seus inimigos, que o crucificaram. Os cristãos devem perdoar como Cristo nos perdoou (Colossenses 3:13). A graça torna a reencarnação inteiramente desnecessária. A salvação é um ‘dom’, uma dádiva recebida pela fé. Em vez de trabalhar para merecer o favor de Deus, o crente recebe graça, um favor imerecido, pelo qual ele é declarado justo. A justiça de Deus é satisfeita, porque Jesus foi punido pelos pecados do mundo na Sua morte. Os nossos pecados não foram ignorados; Jesus pagou pela nossa culpa, levando-a como nosso substituto. Tudo isto é profundamente contrário à doutrina cármica e destrói a necessidade da reencarnação.”

Referências

Allan KardecO Evangelho segundo o EspiritismoFEB, 2013.

Josh McDowell e Sean McDowell, Mais que um Carpinteiro, Hagnos, 2014.

León Denis, Cristianismo e Espiritismo, FEB, 2008.

León Denis, Gênio Céltico e o Mundo Invisível, CELD, 2001.

Norman L. Geisler e J. Yutaka Amano, Reencarnação: O Fascínio que Renasce em Cada Geração, Mundo Cristão, 1992.

Norman L. Geisler, Teologia Sistemática, v. 2, CPAD, 2010.

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