Uma coisa é certa: toda vez que surge uma nova “biografia” de Jesus, acabamos aprendendo mais sobre o autor da obra do que sobre o próprio Jesus. As diversas reconstruções do “Jesus histórico” abordam os Evangelhos com a mesma abordagem “self-service”: destacam aqueles versículos que parecem concordar com sua tese, e rejeitam todos aqueles que a contradizem como “adulterações” posteriores feitas pela Igreja. Seguindo essa técnica, Jesus já foi elevado às categorias de extraterrestre, hippie, feiticeiro, guru da Nova Era, vegetariano, ancestral da dinastia merovíngia e até mesmo um cogumelo!

Uma das recentes obras que tenta apresentar uma nova imagem da pessoa de Jesus é "Zelota – a vida e a época de Jesus de Nazaré" (Zahar, 2013), escrita por Reza Aslan. Aslan tem um Ph.D. em Sociologia da Religião e é professor associado de redação criativa na Universidade da Califórnia, em Riverside. O seu livro ocupou o primeiro lugar na lista dos mais vendidos do New York Times por semanas consecutivas. Ex-cristão e hoje muçulmano, Aslan defende a ideia de que Jesus não foi um líder pacífico e amoroso, pregador de um reino espiritual (o “Reino do Céu” ou “Reino de Deus”), conforme a imagem comumente aceita por cristãos e não-cristãos, mas um zelota (ou zelote): um rebelde militar que desejava proclamar-se rei sobre os judeus e libertá-los do governo tirânico de Roma.

Apesar de aparecer como inovadora, a tese de Aslan nada tem de nova. É uma reapresentação da ideia proposta por S. G. F. Brandon, na obra “Jesus and the Zealots” (1967), utilizando muitos dos mesmos argumentos. Quando não aplicados versículos bíblicos descontextualizados, empregam-se suposições para rechear a história. Apresento a seguir uma análise (não-exaustiva) de alguns pontos da tese apresentada na obra.

1) Uma vez que Jesus era conhecido como “Nazareno”, Aslan argumenta que Jesus nasceu em Nazaré, e não em Belém, como os Evangelhos de Mateus e Lucas afirmam. O nascimento em Belém seria apenas um artifício para ligá-lo ao rei Davi, antigo rei judeu nascido nessa cidade. Mas a denominação “Nazareno” ligada a Jesus diz respeito à pequena cidade onde ele passou sua infância e adolescência. Além disso, a antiga tradição cristã extra-bíblica liga o nascimento de Jesus à cidade de Belém. Justino Mártir (100-165 d.C.), por exemplo, escreveu:

“Escutai agora como Miquéias, outro profeta, predisse o lugar da terra em que ele nasceria. Assim diz: ‘E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre os príncipes de Judá, pois de ti sairá o chefe que apascentará o meu povo’. Sabe-se que há no país dos judeus uma aldeia que dista de Jerusalém trinta e cinco estádios e que nela nasceu Jesus Cristo, como podeis comprovar pelas listas do recenseamento, feitas sob Quirino, que foi o vosso primeiro procurador na Judéia.” (1 Apologia 34:1-2)

2) Aslan utiliza a seu favor o texto onde Jesus afirma que não veio trazer a paz, mas sim a espada (Mateus 10:34). O texto, seguindo o contexto antecedente (Mateus 10:22-26) e subsequente (Mateus 10:35-39), longe de ser um chamado de Jesus à guerrilha armada, simplesmente afirma simbolicamente que a fé em Jesus acabaria por separar famílias. Muitos viriam a crer em Jesus como seu Salvador, e por causa disso, seriam desprezados, rejeitados e expulsos pelos da sua própria casa.

3) O autor argumenta que uma das evidências da insurreição de Jesus contra Roma era a placa colocada sobre a cruz: “Rei dos Judeus” (João 19:19). Ora, a origem dessa acusação eram as próprias autoridades judaicas, que ansiosas por se livrarem de Jesus (cujas declarações religiosas consideravam blasfemas), levaram tais falsas acusações aos romanos. Os judeus eram proibidos de condenar alguém à morte, o que era reservado aos romanos. Mas estes não aplicariam a pena capital a alguém por causa de questões teológicas dos judeus. Por isso a necessidade de imputar a Jesus a culpa de um agitador político.

4) Jesus possuía um discípulo que era zelote, Simão (Marcos 3:18), mas isso não implica que o próprio Cristo o fosse. Jesus também aceitou entre seus discípulos Levi Mateus, um publicano (cobrador de impostos), o extremo oposto do movimento zelote: estes eram vistos como apoiadores de Roma e traidores do povo judeu.

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5) Aslan afirma que o título “Messias” aplicado a Cristo possuía conotação política, e não religiosa. Isso não é verdade. Embora existam textos que profetizem as ações políticas do Messias como rei (como Isaías 11:1-5), também existiam textos que apontavam os ofícios religiosos do Messias como sacerdote (Salmos 110:4) e profeta (Deuteronômio 18:15-18). Obras judaicas como o Testamento de Levi e os escritos da comunidade de Qumran testificam a expectativa de ofícios religiosos pelo Messias.

6) “Há, no entanto, uma coisa sobre a qual todas as profecias parecem concordar: o messias é um ser humano, não divino. A crença em um messias divino teria sido um anátema para tudo o que representa o judaísmo, razão pela qual, sem exceção, todos os textos na Bíblia Hebraica que tratam do Messias o apresentam no exercício de suas funções messiânicas na Terra, não no céu.” Apesar dessa informação, é interessante que Aslan reconhece que Jesus aplica a si mesmo o título de “Filho do Homem”, a partir da referência bíblica de Daniel 7:13-14. Mas o texto claramente trata de um ser divino, vindo sobre as nuvens até a presença de Deus no céu, de quem recebe autoridade, glória e reino; e todas as nações e povos lhe rendem adoração. As obras judaicas de 2 Baruque e 4 Esdras também falam de um Messias que exerce funções messiânicas no céu. Diversas profecias do Antigo Testamento testificaram da natureza divina do Messias (por exemplo: Salmos 45:6; Isaías 7:14 e 9:6; Jeremias 23:6; Miquéias 5:2; Zacarias 12:10).

7) Jesus como zelote seria um judeu nacionalista e xenófobo. Interessava-lhe apenas a glória e o bem-estar da nação judaica. E o que dizer das relações de Jesus com a mulher samaritana (João 4), com a mulher siro-fenícia (Mateus 15:21-28), com o centurião romano (Lucas 7:1-10), com os gregos que queriam lhe ver (João 12:20-26) e de sua grande comissão aos apóstolos de abençoar todas as nações da Terra com a mensagem do Evangelho, discipulando-as, ensinando-as e batizando-as (Mateus 28:18-20)?

8) A tese de Aslan passa por alto os textos onde Jesus ordena amar os inimigos (Mateus 5:43), oferecer a outra face (Mateus 5:39), andar a segunda milha (Mateus 5:41), fazer aos outros o que se espera que façam a si mesmo (Mateus 7:12), e afirma que quem matar pela espada, pela espada perecerá (Mateus 26:52). Tais imperativos estão longe de refletirem a ideologia zelote. Além disso, as ideias teológicas de Jesus divergiam frontalmente das dos fariseus e zelotes quanto às suas tradições sobre a correta observância do Sábado, as leis alimentares, os rituais de impureza, a centralidade do Templo na adoração etc.

9) Longe de pensar em iniciar uma revolução e iniciar um reino político terrestre, Cristo afirmou que seu reino não era deste mundo (João 18:36). Não apenas isso, mas quando os judeus vieram para fazer Jesus rei, Ele teve de se ocultar (João 6:14-15), pois não era esse o Seu propósito. Jesus recusou ser auxiliado militarmente pelos apóstolos na noite em que foi traído e entregue aos judeus (Mateus 26:52-54).

10) Para fugir da evidência bíblica que o contradiz, Aslan argumenta que os Evangelhos foram escritos depois da destruição de Jerusalém não mãos dos exércitos romanos, no ano 70 d.C. Como o movimento de resistência judaica falhou, a pessoa de Jesus precisou ser “reescrita”, de forma a ser apresentado como um pacifista favorável a Roma. “Depois da revolta dos judeus e da destruição do Templo de Jerusalém, a Igreja primitiva tentou desesperadamente separar Jesus do nacionalismo que levou àquela guerra terrível”. Sobre esse ponto, posso apenas remeter o leitor à obra “Redating the New Testament”, de John A. T. Robinson (1976). Robinson aceitava uma data tardia para a escrita do Novo Testamento, mas após investigação histórica, concluiu que o Novo Testamento é obra dos apóstolos ou seus contemporâneos, e que todos os seus livros, incluindo os Evangelhos, as cartas e o Apocalipse  foram, com toda certeza, escritos antes de 64 d.C.

11) Aslan afirma que Jesus não foi sepultado em um túmulo, pois condenados à crucificação eram normalmente jogados em valas comuns e devorados por animais. Esse era o procedimento mais usual, mas nem sempre era o que ocorria (cf. por exemplo Flávio Josefo). José de Arimatéia era um homem rico, influente no Sinédrio e seguidor de Jesus. Devido à sua influência, não é implausível que Pilatos tivesse atendido a seu pedido para lhe entregarem o corpo de Cristo. Além disso, o sepultamento de Cristo aparece no antiquíssimo credo citado pelo apóstolo Paulo em 1 Coríntios 15:3-8, o qual foi escrito menos de 5 anos após a morte de Cristo (período demasiado curto para desenvolvimentos lendários).  Temos evidências tanto dos Evangelhos como de escritores dos séculos II e III (Justino, Tertuliano e Orígenes) de que os judeus afirmavam que os discípulos haviam roubado o corpo de Jesus do sepulcro enquanto a guarda romana dormia, e mentido que Ele havia voltado dos mortos (Mateus 28:11-15). Agora, veja que ao elaborar essa justificativa, eles estavam claramente admitindo que Jesus foi colocado em um sepulcro e que este estava vazio dias depois da crucificação.

12) Aslan afirma que os cristãos creem em uma versão de Jesus que foi distorcida pelo apóstolo Paulo. “Dois mil anos depois, o Jesus de Paulo soterrou completamente o Jesus da História.” Sobre isso, veja o que escrevi em Paulo Traiu Jesus?.

O Cristo histórico não era um revolucionário político. Ele era o Messias prometido nas Escrituras, que entregou a Sua vida na cruz e ressuscitou dos mortos para o perdão dos pecados de todos aqueles que depositam fé nEle. O Jesus que, por meio de Sua maravilhosa graça, ainda está de braços abertos para Aslan, para mim e para você.

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